Todavia, Caminhar

À primeira vista, a produção de Carolina Martinez (Rio de Janeiro, 1985) parece engendrar uma precisão espacial e pictórica, uma espécie de ancoragem preci- sa e definida em arranjo formal e elegante. Trata-se do que está na superfície do nosso olhar mais desatento, vinculado e adestrado para uma percepção apressada e ansiosa: um claro vínculo à captura de nossa atenção dispersa em tempo de telas e sua luminosidade frenéti- ca.

É justamente nessa imprecisão da nossa primeira mirada que as obras da artista nos levam ao engano. A valer, os trabalhos põem em xeque essa percepção acelerada, ainda mais quando estão em potência coletiva na composição espacial de um cubo branco; por hora, subvertido – a sala expositiva da galeria. Entre sonho e realidade, os trabalhos te convocam a construir caminhos e descaminhos dos mais variados e com propósito de aberturas, passagens e imprecisões permanentes.

Portanto, é a partir desse desconforto intrigante que as peças instaladas evocam que devemos mergulhar a nossa percepção na mostra – Todavia, caminhar. Nesta dada situação, nosso corpo é compelido ao movimen- to, a delinear trajetos: frente e volta, esquerda e direi- ta, horizonte e opacidade, topo e chão. A fruição é de sobremaneira ativa: o espaço da experiência sensitiva de cada um e a consciência contextual parecem exercer papel central na construção perceptiva de cada um. Não raro, a própria compleição física do especta- dor – altura, vista, tamanho dos passos, posição de equilíbrio – parecem perturbados na resposta ao que é materialmente dado a ver.

É doravante essa possível transitoriedade permanente de compreensão das obras no espaço que faz com que colidam e sejam tensionadas três linguagens fundamen- tais da produção contemporânea: as fronteiras da pintura, a ativação da escultura e adaptabilidade da dança. Se me permitem: a prática artística da Carolina Martinez é – para além de um diálogo poético com o espaço de nossa existência – o próprio espaço que dança. Há, na medida em que caminho, a sugestão de coreografias espaciais possíveis, cada qual com horizonte, profundidade e cores próprias.

Essa dança que tende à imensidão e a indefinição de começo e fim, muito fora do lugar objetivo da exposição, parece reaver o que o filósofo francês Gaston Bachelard, em seu A poética do espaço, chamou de “imensidão íntima”. Mergulhar no contexto expositivo da artista é, em certo sentido, ser confrontado com um ambiente meditativo e intimista, só que claramente infinito; um lugar impreciso que a vista já não mais alcança. Em uma de tantas de nossas conversas, Carolina Martinez ressal- tou a convergência espacial em seus trabalhos de uma composição-forma que foi adjetivada como “meditativa”: qual seja, um lugar aberto à reflexão que se deflagra muito distante também da própria ação contemplativa.

Desde a instalação das peças que compõem a série Toda Vida, cercadas pela geometria da sala que, por sua vez, recebe as produções bidimensionais, o espaço organiza- do coloca o visitante na possibilidade do devaneio reitera- do por Bachelard em sua análise fenomenológica e poéti- ca do espaço. Aqui, é a vivência íntima protagonizada por cada um de nós. Estar diante dos trabalhos de Carolina Martinez, em coreografia, é estar também na condição de acessar o signo do infinito. De modo geral, duas instâncias se entrelaçam e dão medida à produção da artista: a conjugação entre espaço e tempo, já que cada obra em si – tanto na série Plaquinhas, em que a tinta impregna o concreto, como nas pinturas, em que a tinta impregna a madeira – movimentos no espaço da percepção se insinuam, ganhando gravidades, profunde- zas, elevações ou, até mesmo, os mais variados caminhos.

Mesmo que já reiterado em outras ocasiões, não há como não mencionar o lugar formativo da artista: a produção de conhecimento dos campos correlatos da arquitetura e do urbanismo. Carolina é arquiteta de formação e, dessa condição, extrai repertório e ferramentas para construir seu corpo de trabalhos. A partir da total consciência de uma des-funcionalidade da arte, a artista propõe sua

aventura poético-espacial, quase sempre em um lugar fronteiriço da dinâmica espacial da vida.

Por isso, outra leitura apressada, ainda que pertinente, é associar a sua prática artística à tradição construtiva da arte brasileira. Todavia, a abertura espacial que o trabalho promove se contrapõe ao equilíbrio premedita- do da construção racional que esteve ensejada no que nossa arte concreta e nossa arquitetura moderna almejaram alcançar. As formas da tinta acrílica sobre a madeira, as peças volumétricas em concreto ou a longilínea peça de madeira que toma conta da sala são presumíveis pontos de partida para a leitura poética de suas mais variadas produções.

Aliás, há na exposição uma peça de madeira que se insinua e demarca todo o espaço expositivo. Essa espé- cie de “rodapé”, que também pode ser um “rodateto” a depender de como o olhamos, percorre toda a geome- tria ortogonal e áspera da sala, criando quase que uma linha guia para a condução da vista. Se ele de partida funciona como elemento de amarração formal de todas as obras e, por vezes, como dispositivo de apoio e suporte, é também um gesto de intervenção arquitetôni- ca efêmera. A madeira crua entra como um gênero de materialidade efêmera que corrompe o espaço arquitetônico interior da sala, suspendendo temporaria- mente as convenções da arquitetura doméstica. A meu ver, este gesto artístico é a formulação de um parapeito aberto para o mundo imaginado da artista, na medida em que nos guia para a observação de trabalho por trabalho e, por fim, na associação entre eles.

Na medida em que caminhamos e desviamos nosso olhar com a presença desse rodapé/rodateto, temos a possibi- lidade de colocar em xeque o que é fora e o que é dentro, e vice-versa. Afinal, cada obra bidimensional ali disposta e orientada pelo fio de madeira nos abre para um lugar de potencial infinitude; tudo coordenado pela dança sugerida das cores ali impregnadas nas formas geométricas. É como uma espécie de jogo de ida e de volta, um movimento que nos direciona entre a segu- rança objetiva da casa, lugar em que aparentemente temos controle, e o acaso que nos domina do lado de fora. Também, a instalação de madeira que entrelaça o espaço de exposição formula uma triangulação plausível de intenções: é ela uma obra site-specific, um dispositivo arquitetônico ou um recurso cenográfico?

Não temos a precisão de uma resposta, mas estamos sujeitos a uma instância ambígua, condição inerente às intenções da artista.

Por ora, uma outra pista de leitura que a artista nos fornece encontra eco na titulação poética dos trabalhos em madeira recobertos por volumetrias em cor. São elas as quatro pinturas nomeadas: Face serena, Escolha, A surpresa do caminho e Lanterna. Cada uma formula mundos que se abrem a quem as vê e adentra. São buracos, passagens, labirintos, caminhos, ambientes e movimentos estruturais e geométricos que nos levam às paisagens fora da aridez da realidade. Pode-se dizer que, assim como elucidado pela poeta Ana Martins Marques, “entre a ilha e o ir-se”, Carolina Martinez nos oferece o devaneio de novos espaços existentes em uma condição não palpável. Afinal, a vida não se faz tão somente na concretude da cidade e da casa, mas também em imaginação e sonho. Apesar dos nossos paulatinos obstáculos e retornos, todavia, é preciso caminhar.

Diego Matos Abril de 2023

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