Aquilo que não conseguia ver



*** primeiro movimento ***





Há sempre alguma incerteza, indefinições que persistem, embora nem sempre prontamente identificáveis. Sabe-se apenas, com certa exatidão, que havia algo que não se via. Mas há algo que alguém passou a ver? Ou ainda perdura essa impossibilidade? Neste caso, só há afirmações pretéritas. O presente é movediço, aberto e impreciso. “Aquilo que não conseguia ver”, enfim, parece criar um laço entre dois ou mais sujeitos, entre artista e espectadores, um vínculo que se constrói pela vontade de partilhar uma condição (o ver), com o intuito de mudar uma situação (o não ver), mas cuja eficácia não pode ser verificada. Afinal, a arte é o campo das ações poéticas. Mas de que visível estamos a falar? Há algum mistério nisso tudo.



Carolina Martinez interessa-se por espaços arquitetônicos e superfícies urbanas. Contudo, seus trabalhos não se resumem a representar uma volumetria, uma configuração assumida pela relação entre elementos que definem e estruturam o espaço da construção (paredes, teto, piso, etc.) ou sua inserção no ambiente urbano (empenas, fachadas, muros, etc.). Suas pinturas e fotografias não são meras criações projetivas ou registros de algo que existe ou teria existido. Se podemos verificar tratar-se de locais vazios, aparentemente desabitados, é preciso reforçar que essas imagens são também resultado da presença da artista – que viu ou imaginou o que se apresenta agora diante de nós – ou mesmo um conjunto de “provocações”, convidando-nos a habitá-las, mesmo que apenas por meio do olhar, colocando-nos no lugar de quem as produziu. Mas o que a artista viu? O que ela insinua? O que oculta? Esses não são espaços desprovidos de memórias, histórias, tensões. Há neles camadas soterradas, ambivalências, sobreposições. Nem tudo está à mostra.



A princípio, parecem imagens simples, quase sempre sem muitos detalhes; imagens que poderiam ser apreendidas em um relance. Mas de repente a artista nos convida a olhar mais atentamente para cada uma delas, seja porque produz uma intervenção sobre a superfície, destaca alguma qualidade do material, ou mesmo interfere no enquadramento, iluminação e escala da cena. O que vemos de fato? O que está presente diante de nós? O título da exposição nos convoca a evitar leituras prontas, condicionamentos do olhar, cartilhas do visível – como se tudo já estivesse previamente definido, cabendo ao espectador decifrar, “aplicar” algum saber com o intuito de interpretar o ver e reafirmar o aprendizado de que o mundo está dado.





*** segundo movimento ***





Em Aquilo que não conseguia ver, trabalho homônimo, percebemos algo que se relaciona com trabalhos anteriores da artista. Mas a escala aqui não nos deixa brechas para equívocos. Trata-se de um painel pictórico de grandes dimensões, formado por oito partes quadradas, independentes entre si. Juntas constituem uma única imagem, cujos fragmentos podem sugerir novas significações quando combinados em conjuntos menores. O que vemos? Um interior, suas volumetrias, aberturas, o jogo de luz e sombra. Há a presença da cor, mas também a textura da madeira, tanto por baixo do pigmento quanto do verniz. A textura persiste, com suas variações, veios, imperfeições. Prevalece um jogo, que compreende o diálogo entre escala humana, espaço projetivo da pintura e ambiente expositivo. O conjunto de dípticos Sem Título I e II apresenta uma operação similar, mas inversa. A escala é menor; o suporte, o papel; a lâmina de madeira é colada sobre a pintura, encobrindo-a e redefinindo o espaço representado.



Dos trabalhos fotográficos, ganha destaque o tríptico Ensaios para Bleecker Street, que faz parte do projeto In Search of Nothingness – A Procura do Nada –, iniciado em 2015. As três pequenas imagens do mesmo ambiente, desdobradas de uma fotografia produzida com câmera Polaroid, recebem a interferência de uma colagem. A lâmina translúcida de madeira tende a encobrir certos aspectos da imagem, ao mesmo tempo que ressalta outros ou explicita novas possibilidades de apreensão do espaço originalmente capturado pelo aparelho. Essa série compreende um conjunto de fotografias de ambientes vazios e de superfícies urbanas, das quais fazem parte Houston St. e Red Hook I e II. O caráter efêmero atrelado ao uso da Polaroid, a baixa nitidez das imagens e a coloração variável própria de um processo de controle parcial permitem considerar esses trabalhos como metáfora da memória humana, repleta de lembranças muitas vezes fugazes e de esquecimentos nem sempre involuntários.





*** terceiro movimento ***





Carolina Martinez procura instigar no espectador um olhar demorado para as imagens que produz, ressaltando nelas aspectos que nem sempre seriam perceptíveis a priori. Convida-nos, desde modo, a nos deter por mais tempo diante de seus trabalhos. Entre o “não conseguir ver” e o “condicionamento do visível” sobressai-se nossa disponibilidade para olhar o mundo e as coisas que dele fazem parte. Enfim, há diferenças entre ver e olhar.

Ivair Reinaldim
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